segunda-feira, 23 de junho de 2014

Artigo - Crise na Síria

Revival da Guerra Fria – A crise na Síria
Crise na síria reacende antigos interesses políticos, econômicos e militares no estratégico Oriente Médio, e traz a experiência da tensão dos tempos de Guerra Fria.

Por Leticia Campos*

Em 1602, aportaram na costa leste da América do Norte, ingleses puritanos, expulsos de suas terras durante a eclosão da reforma Protestante ocorrida na Europa. Proibidos de voltarem à sua terra natal sob o jugo da prisão por heresia em meio à Santa Inquisição Católica, ficaram, e estabeleceram no novo mundo a Nova Inglaterra. Com mentalidade capitalista, povoaram, e reinvestiram na nova colônia.
As famílias estabelecidas colonizaram, e desenvolveram as novas terras, reinvestindo na colônia o fruto da exploração das terras. As Treze Colônias deram origem aos Estados Unidos da América, pais com cerca de 280 milhões de habitantes, fronteiras com os dois maiores oceanos do mundo, e pioneiros em democracia, presidencialismo. Foi lá, naquela erma costa leste que os ingleses foram expulsos na tentativa de estabelecer o pacto colonial. A independência das Treze Colônias abriu espaço para a primeira democracia das Américas, criou uma constituição liberal que inspirou a Revolução Francesa, e alavancou a conquista do oeste, expandindo suas fronteiras até o Pacífico. Sem dúvida o 4 de julho, data comemorativa da independência das Treze Colônias, é extremamente festivo, patriótico, e o maior marketing dos estadunidenses.
Desde a independência, os Estados Unidos figurou como um importante ícone que influencia o mundo ocidental até hoje. Todos, absolutamente todos os presidentes que passaram pela liderança do país estiveram de alguma forma envolvidos em algum tipo de guerra que vai além de suas fronteiras territoriais. Conferindo ao pais o título de “xerife” do mundo. Quando da eleição de Bill Clinton, a esperança de que este estigma fosse quebrado ganhou força. Porém, o conflito no Kossovo, arruinou essa esperança. Barack Obama, em seus discursos de campanha, reiterou ações geopolíticas que levou cientistas políticos da comunidade internacional a dizer, que agora, os Estados Unidos teria, enfim, um presidente que não se envolveria em conflitos externos, e daria um passo na unidade mundial em torno da paz, e dos conflitos mundiais.
Assim, podemos dizer que a sociedade estadunidense é uma “sociedade espartana”. Fundamentada e conjurada em função de guerras. Uma sociedade belicosa, cujo gasto militar é estimado em cerca de U$ 4 bi anuais. Mais que o orçamento de países africanos. As guerras movimentam uma economia poderosa. Subsidiar a fabricação de armas, legislações flexíveis quanto ao porte doméstico e comércio de armas, e todo aparato de suporte e apoio gera empregos e renda para milhares de pessoas. Capaz inclusive de tirar um pais de situação de deseconomia. Na história, guerra e crise econômica sempre andaram juntas. E ambas servem para tirar um pais de crise. A Crise de 1929 abalou a economia mundial. Fato. Porém, em 1937 diante da fragmentação dos reinos europeus, e uma onde de ultranacionalismo comandada por nazistas alemães e facistas italianos, mergulhamos na 2ª guerra mundial. Europa destruída, e hegemonia estadunidense, que não fora palco de conflitos contundentes. Entraram na guerra em função do único ataque em suas terras, e não continentais, em Pearl Habor no Havaí. 
A Guerra Fria, apesar de todas as tensões foi fundamental para consolidar a hegemonia econômica e política dos Estados Unidos a nível mundial. Retrato esse tirado na criação do Estado de Israel, em 1948, e acendendo uma grande crise ideológica no Oriente Médio. Em 1991, após o fim da Guerra Fria, acontece a Guerra no Golfo, a primeira transmitida ao vivo pela televisão com imagens infra-vermelho. Uma semana de bombardeios em Bagdá, capital do Iraque, antes da invasão das tropas da ONU avançarem por terra. Nesse momento, “desovar” os mísseis e ogivas Tomawak, e boa parte do arsenal acumulado na Guerra Fria eram um ótimo negócio. Consolidava ainda mais a presença dos estadunidenses em solo da Ásia Menor, gerava mais tensões locais, permitindo que russos fornecessem também suas armas acumuladas em tempos de guerra fria.
A Guerra do Golfo era dispensável, mas, para o momento, oportuno para a economia agora começando a ser globalizada. Da mesma forma, após os ataques de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center gera uma nova onda de nacionalismo exacerbado. Invasão do Afeganistão em 2001, na caçada a Osama Bin Laden, líder do grupo terrorista Al-Qaeda, responsável pelo ataque, tornou-se ponto de honra. Vergonha. A briga de gato e rato acaba frustrada, numa das ações mais estúpidas tomadas por George Walker Bush, presidente dos Estados Unido à época. 
Interessante é que a popularidade de Bush que disputava sua reeleição na ocasião era muito baixa. A guerra no Afeganistão e depois no Iraque alavancou as pesquisas eleitorais e culminou na sua espantosa reeleição após um governo bagunçado e problemático. Em 2003, sem achar Bin Laden, avançam sobre território iraquiano, com a justificativa de que Sadam Hussein escondia armas químicas de destruição em massa, e de tabela dava refúgio a Bin Laden. Uma guerra sem vencedores, frustrada, vergonhosa. Serviu apenas para acirrar as intransigências entre ocidente e oriente dar baixa de morte a milhares de jovens norte-americanos, estruturar as guerrilhas e grupos terroristas, dar créditos ao fundamentalismo islâmico. Mas alavancou novamente a economia ocidental que paramentou toda a estrutura de guerra. Desde 2008, a economia estadunidense vem passando por grande crise. Especula-se entre os economistas e cientistas políticos a possível moratória. Isso geraria um grande efeito dominó afetando as economias de todo mundo, inclusive a brasileira, que vem aos trancos tentando superar esse momento. Será que um conflito na Síria seria interessante para movimentar a economia do país e tirá-lo da crise? Há quem diga que sim. Uma guerra é sempre vantajosa e lucrativa. Mas são apenas teorias da conspiração. Nada comprovado de fato.
Mas, como é uma vitrine, os Estados Unidos deveria dar o primeiro passo. Obama prometeu retirar as tropas do Iraque após desastrada incursão em 2003, desativar a prisão de Guantánamo em Cuba. Promessas realizadas em parte. Finalmente, o mundo veria, enfim, o término de conflitos pós-guerra fria.
Aliás, Huntington reformou o mapa geopolítico mundial após a guerra fria, propondo a tese de “choque de civilizações”. Havia uma grande expectativa mundial que o fim do conflito entre Estados Unidos e União Soviética, reestabeleceria a paz mundial, e o mundo mergulharia numa “onda” de desenvolvimento e tranquilidade. Porém, os conflitos encobertos durante a Guerra Fria começam a aparecer. Divergências ideológicas, jogos de interesse, conflitos étnicos e religiosos começam a “pipocar” no mundo. Ora, não era para existir a paz mundial? Por que então, o mundo assiste a um número tão grande de conflitos espalhados em todos os continentes? São várias identidades culturais do mundo que modelam as coesões, as desintegrações e os conflitos numa Nova Ordem Mundial pós Guerra Fria, em que, Estados se aliam, ou não, em função dos sentimentos de pertencimento civilizacional. Desde o fim da Guerra Fria, maioria das guerras ocorre entre povos e civilizações diferentes - Israel-Palestina, as Guerras do Golfo, a desintegração da Iugoslávia, a instabilidade da Caxemira, a luta pela independência da Chechênia, a até mesmo a presença anglo-americana no Iraque.
O termo "choque de civilizações" está intimamente ligado aos conflitos intrínsecos entre culturas diferentes que afloram no pós-guerra fria, e que se acobertavam com a disputa entre Estados Unidos e União Soviética.
As teorias da conspiração dizem que a ex-URSS precisava “desovar” seu arsenal militar. Para isso, a Russia tinha interesses em abastecer as milícias rebeldes de governos corruptos, fracos, e falidos de países do continente africano, asiático e latino americano. Do outro lado, o interesse dos Estados Unidos em manter na base seu principal aliado – Israel, além do principal negociador, investidor econômico norte-americano fora dos Estados Unidos e maior produtor mundial de petróleo, a Arábia Saudita.
Parece que vivemos uma versão mais moderna de Revival da Guerra Fria. O Oriente Médio virou a “bola da vez”. Petróleo, longas ditaduras (estabelecidas durante a guerra fria para evitar a expansão do comunismo por Edwin MacCarty), gerações desacostumadas com a liberdade, acenderam a chama por um novo tempo.
Em 2011, o governo de Hosny Mubarack no Egito sofre o primeiro golpe. A insurreição da população às ruas pedindo a derrubada do ditador no poder desde 1981, dá início a uma leva de revoltas que se espalharam pelo Oriente Médio e norte da África, pedindo a queda de seus governantes. O movimento conhecido como “Primavera Árabe” marcou a influência das redes sociais na organização destes movimentos, e o basta da população pelos longos anos de domínio de seus ditadores. Além de Mubarak, Zine al Abidine ben Ali, presidente da Tunísia, ditador desde 1987 também cai após pressões populares, além da queda e morte de Muammar Cadafi, presidente da Líbia, no poder durante 42 anos. Em ambos os casos, eram políticos que apoiavam os Estados Unidos, embora Tunísia e Líbia não reconhecessem a autonomia de Israel.
Colhemos os frutos hoje daquilo que fora plantado no passado ao longo da disputa ideológica da Guerra Fria. Vejamos. O Estado de Israel, criado em 1948, teve total apoio dos Estados Unidos. Mais do que justificar a criação de um estado judaico prometido após os anos de holocausto provocado pela 2ª Guerra Mundial, teve seu território privilegiado aos judeus, numa terra outrora conhecida como Palestina. A promessa de criar na Palestina, transformada em Israel, um estado verdadeiramente palestino aos árabes, ficou só na promessa. Os altos investimentos na militarização e desenvolvimento econômico em Israel transformaram o novo território em notório exemplo aos demais países do Oriente Médio, mas fincou as bases militares dos Estados Unidos na região, que tem no petróleo seu maior produto econômico. O estreitamento das relações comerciais com a Arábia Saudita facilitou a expansão da área de influência estadunidense.
Porém acirrou o descontentamento com grupos muçulmanos radicais e fundamentalistas, que vem na presença estadunidense a força de marcação imperialista. A militarização destes grupos durante a Guerra Fria para evitar a invasão das potências hegemônicas da época, fez “criar cobra em casa”. Um dos exemplos mais marcantes foi a invasão soviética no Afeganistão em 1979. Para impedir a invasão dos inimigos, os estadunidenses treinam e municiam o exército Talibã, ultrarradicais muçulmanos, que se estabeleceram no poder e lá ficaram até 2001 quando dos atentados ao World Trade Center, durante a caçada a Osama Bin Laden. Este mesmo, treinado pelo exército norte americano para combater os soviéticos.
Xiitas e Sunitas, os maiores grupos islâmicos, sendo os sunitas responsáveis por mais de 90% dos seguidores do islamismo, divergem entre si, e dentro da perspectiva muçulmana provocam atritos. Dentre as maiores diferenças está na questão da escolha do Califa, principal representante da religião. Para os Xiitas, apenas um muçulmano puro poderia ocupar esse posto. Para os sunitas, qualquer muçulmano poderia estar apto a este cargo. Xiitas defendem estados islâmicos teocráticos puros, gerando fundamentalismo que desencadeia a formação de grupos extremistas e fundamentalistas com o Hezbollah no Líbano, Hammas em Israel, talibã no Afeganistão. Mas o exemplo mais emblemático está no Irão, com a implantação do Estado Teocrático do Irão durante a Revolução Islâmica de 1979 liderada pelo então aiatolá Khomeini.

A vinculação dos atos terrorista mundiais, do acirramento ideológico dentro do mundo islâmico com o Ocidente abre espaço para guerras civis, atraso econômico e baixo desenvolvimento. O Islamismo é a religião que mais cresce percentualmente no mundo, aumentando a cada dia o número de fiéis. O crescimento do Islamismo é explicado por dois fatores: o rápido aumento da natalidade nos países onde a religião é maioria entre a população, e a conversão de novos fiéis. 
O Islã hoje compreende mais de um bilhão de fiéis. Os muçulmanos se estendem de leste a oeste do Senegal, no ocidente africano até as Filipinas, nos limites do Oceano Pacífico e de norte a sul, do Cazaquistão a Tanzânia e Indonésia, nos dois lados do Oceano Pacífico. . 
O mundo muçulmano e mundo árabe são conjuntos geopolíticos e culturais diferentes. Todo o mundo árabe faz parte do mundo muçulmano, pois o islamismo é a religião predominante nos países árabes. O mundo árabe se define pela língua , não pela religião. Nos países árabes existem minorias religiosas.
O mundo muçulmano é maior que o mundo árabe: os países com maior população muçulmana não são árabes: Indonésia, Paquistão, Índia e Bangladesh.
Em geral, os árabes toleravam a cultura dos povos conquistados. Deixavam que os conquistados vivessem com certa liberdade, praticassem sua própria religião e seus costumes. Aos poucos, acabavam convertendo grande parte para o islamismo e absorvendo muitos de seus conhecimentos. As atividades econômicas e culturais do Império Islâmico deixaram marcas profundas, presentes até hoje nos países originados de seus territórios.
Muitas vezes ouvimos dizer que todo ato de violência é terrorismo, mas isso é força de expressão. Nem sempre um ato de violência é terrorista, mesmo quando a vítima é uma personalidade política.
A tentativa de assassinato do presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, em 1981, é um exemplo de violência sem conotação política. O autor dos disparos, John Hinckley Jr., agiu isoladamente, motivado por questões pessoais. Já o assassinato do premiê israelense Yitzhak Rabin por um extremista judeu, em 1995, este sim, foi um ato terrorista.
O atentado contra Reagan não teve o objetivo de fazer propaganda política ou ideológica, ao passo que a morte de Rabin fazia parte da estratégia política de uma organização radical. O objetivo era interromper o processo de paz no Oriente Médio. De qualquer modo, atentados contra chefes de Estado fazem parte de uma longa história de práticas terroristas mundo afora.
Nessa seara, entra no cenário geopolítico atual a questão da Síria. Vizinha a Israel, não reconhece o estado judaico como autônomo. Seu presidente Bashar al Assad, ditador há mais de uma década no poder envolve-se na polêmica sobre o uso de armas químicas em um atentado contra civis na periferia de Damasco. A comunidade internacional, após perícia dos produtos químicos constatou a presença de gás sarin no sangue das vítimas. O emprego de armas de destruição em massa, em especial de armas químicas não é novidade. Gás mostarda, sarin são usados desde a antiguidade. Suas funções são a paralização do sistema nervoso, e a morte. É uma morte lenta e dolorosa para suas vítimas. O massacre na Síria é considerado pela o mais violento desde os anos 1980.
Criou-se então a discussão de uma possível intervenção militar. Porém, o jogo de interesses estava apenas começando. De um lado, os Estados Unidos defendendo a intervenção militar na Síria, na tentativa de destruir as armas químicas. Do outro, a Rússia que tem interesses econômicos, políticos e militares é o principal apoiador do governo sírio. Russos e estadunidenses revivem então, a tensão da Guerra Fria. Vladmir Putin diz ser contrário à intervenção militar na Síria, deixando no ar o apoio militar de contra ofensiva ao governo sírio. Obama, em discursos que não combinam com sua personalidade, mostra como uma guerra pode ser lucrativa para um país que tenta sair da crise econômica que vive desde 2008. O mundo ocidental, e as potências orientais como Japão e China também perceberam essa intenção e saem em apoio à negociação de paz na região sem guerras.
A ONU, outrora preterida pelo governo Bush durante a Guerra no Iraque, teve papel marcante nesse momento de tensão. Conseguiu reunir os líderes do Conselho de Segurança para discussão e votação sobre a intervenção bélica na Síria. Como do conselho é soberano, e as votações são por unanimidade, prevalece o bom senso. Estados Unidos e Rússia chegaram a um acordo sobre a crise na Síria. Ficou decidido que a OPAQ (Organização para a Proibição de Armas Químicas), vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2013, supervisionaria a redução do arsenal militar químico da Síria, e posterior proibição de produção de novas armas químicas. No texto, além do dispositivo anterior, não deixa claro que tipo de punições a Síria teria em caso do não cumprimento das normativas.
O ataque químico na Síria é sem dúvida uma grande tragédia. Os mil mortos dos subúrbios de Damasco, capital do país, vítimas de armas químicas reacende a discussão sobre a intolerância religiosa, étnica entre um povo, e coloca a sociedade internacional em estado de alerta. Faz aparecer os interesses escusos dos países mais influentes do mundo na região do Oriente Médio. Mexe com as relações internacionais, com disputas de poder político e econômico. Faz antigos aliados em todas as ocasiões como Estados Unidos e Inglaterra, ficarem em lados opostos. O mundo já não é mais tão inocente e influenciável pelos interesses de uma potência mundial. Mostra que o mundo aparentemente amadureceu. Os Estados Unidos continuam com o maior PIB mundial, e a mais influente democracia do mundo. Mas, a crise na Síria deixa claro as novas intenções dos aliados e opositores aos estadunidenses. É fundamental que as tratativas de acordos de paz na região do Oriente Médio continuem incessantemente. Contudo, as diferenças culturais, políticas, econômicas e religiosas são o grande desafio destes novos tempos. A ameaça de um conflito localizado fez as gerações das décadas de 1990 em diante, que estudam a Guerra Fria nos livros de História, terem a experiência de como o jogo geopolítico traz tensão mundial.


*Leticia Campos é graduanda do curso de jornalismo da Universidade Metodista – Campus Rudge Ramos

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